quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O gosto do sangue

  Olhavamo-nos longamente. A respiração calou e seria capaz de ouvir nosso coração. Nos meus lábios, a raiva e o desprezo tornavam-no uma massa agridoce. A desordem psicológica me fragmentava. No entanto, meus olhos continuavam pousados nos seus.
  Os meus olhos eram seus? Indiscutivelmente seus. Era toda sua. Em tempos imemoráveis, ligamo-nos por uma corda invisível. É verdade que essa mesma corda se tornou a minha forca. A minha garganta ardia e rasgava, mas meus dedos só faziam apertar o nó. Todos os meus sentimentos reverberavam dentro de mim, chocando-se nas paredes orgânicas. O ar me faltava, saia pelos poros enquanto você me olhava risonha. Seu cinismo bailava ao meu redor, ao som do deboche, no compasso do meu fracasso. Você sempre fora graça e leveza. Como conseguira me matar com doses homeopáticas e torturas chinesas? Do meu pescoço, filetes vermelhos escorriam corpo abaixo. Já não importava. O ódio febril me possuía e corroía o torpor. Tudo virava ferrugem sentimental, dando um tom cúprico aos nossos olhos.
  Memórias da nossa história, como lembretes espalhados, invadiam minha mente em enxurrada. Eram torrentes de arrependimentos, resignação, fracassos, mentiras. Fui vencida desde o primeiro instante que me esbarrei nalgum canto espelhado. Entreguei-me primeiro por vontade de possuí-la, mas a subjugação já marcava meus pulsos antes mesmo que notasse e a situação se inverteu: de dominadora à dominada. Bebi sua essência e me afoguei na própria ânsia. E agora, diante de você, via a derrocada personificada. O riso irônico rasgou nossos rostos. A que ponto havíamos chegado?
  Corriam caudalosos todos os pensamentos até meus punhos, dando força para romperem a barreira que nos separava (ou unia?). Socos secos ecoavam em meio aos estilhaços caídos e eu só pensava em me libertar. Teria sido pretensão ou apenas ignorância? Seu rosto, agora deformado por ângulos agudos, mantinha o riso ácido. Por quê tão invencível? E enquanto mais meus dedos se abriam em vales, mais o ar me faltava.  Estava cega, surda de raiva. O pulmão queimava e as paredes da garganta já haviam se colado. Os sentidos se embaralhavam e a cortina da inconsciência cismava em cobrir meus olhos. Tudo se turvou, mas ainda via com dificuldade seu sorriso desmoronar. Sob forma de minúsculo espelhos cadentes, minha vitória se fez plena.
  A liberdade, enfim! As carnes inertes ainda formigavam e finalizavam a mórbida dança. Os pés flutuavam no ar quente e sanguinolento. Numa epifania tardia, porém, percebi o que havia se mostrado na origem: éramos unidas pela vida. Opostos complementares presos no mesmo físico, mas tão inconciliáveis. Como era sádico o destino! Quem ria dele agora era eu. Extirpei-lhe sem pudor, mesmo me matando. A corda que fechava a minha garganta era a rachadura no espelho. O seu riso era a minha essência. Extirpei-me, como se faz a um câncer, e junto o peso de ser você, o inconveniente de sermos. Agora, na sala escura, apenas matéria sobrava.
Jaziam nossas antigas gaiolas. Pairava, enfim, a liberdade metafísica.

2 comentários:

  1. Ótimo texto. Tão absorvível que me tornei angústia num primeiro momento e alívio no fim.
    Uffa! Beijos, Ju.

    Ps: sanguinária!

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  2. A sensação de "chumbo" está muito presente aqui. Como o personagem se sente asfixiado e me passa isso, como as metáforas caem muito bem, e as descrições físicas dos orgãos também traz esse sentimento de angústia e ao mesmo tempo torpor e alívio.

    Consegui ver o escárnio de um quanto á libertação do outro, perfeitamente.

    (Concordo com a Mah. Sanguinária sim, extirpando esses cânceres, assim.)

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Todos merecem palavras reconfortantes em meio a esse mar de indiferença.