O café ainda queimava a língua e o açúcar se dissolvia facilmente. Descia a garganta rasgando, mas toda aquela dor era deliciosa.
Um.
Dois.
Três.
Do amargo para o doce foram três goles. Da felicidade para o fracasso, também. O sincretismo do universo intrigava Ana, apesar dos seus problemas com Pedro urgirem por solução. Não queria pensar e não o fazia. Procrastinar problemas era o seu vício.
- Ainda tem café?
- Aham, em cima do fogão. Quer que eu esquente?
- Não precisa.
O diálogo se resumia a um pequeno questionário: perguntas e respostas rápidas. Enquanto o perfume de Pedro se misturava com o aroma do café, Ana observava a xícara derramando o café num gole. Ele ansiava ir embora.
- Almoça em casa?
- Não.
Olhou-a por um instante e a encontrou animalizada, coberta de desgosto e olheiras. Estava aberta, crua e resignada, mostrando tudo que podia e não queria. Porém, já não o espantava e sequer se preocupava! Se perdera noites de sono com as antigas brigas, hoje esperava que a reconciliação viesse aos seus pés. As discussões eram dramatizações românticas, beiravam o ridículo e já tinham perdido o brilho.
Era intrigante como aquele amor se dissolvera em dez meses e três brigas. Amor que arrancava lágrimas enquanto se corroía e, hoje, substituído por indiferença preguiçosa.
Ana monologava algo da mesa, mas Pedro não escutava. Bebia o gole derradeiro, já morno e açucarado. Observava a massa leitosa se misturando lentamente com o resquício do café. Ansiava por mais uma xícara, assim como ansiava todas as manhãs. A rotina era difícil de ser quebrada.
As palavras eram jogadas da sua boca, mas Pedro continuava intocável. Todos os seus sentimentos fermentados já não se traduziam em frases com nexo, no entanto, pouco lhe importava. Era a válvula de escape quando as lágrimas já não davam vazão. Ana pensava em todas as crises e paixões daquele relacionamento nascido na falência.
Calara-se enfim. O turbilhão de emoções resultara no cansaço. O seu choro continuava, agora mudo e descolorindo a xícara suja de café. Não pensava mais. Deveriam ter ido com as palavras, seus pensamentos. No entanto, encontrava-se em paz. Achara o alívio na derrota.
A haste do bule estava fria há tempos. O corpo metálico, entretanto, exalava ainda o calor restante. O silêncio havia se estabelecido no cômodo. Pouco mudara para Pedro. Para ele, o silêncio havia se estabelecido muito antes. A leveza do recipiente indicava o fim do café, mas não deixava de incliná-lo sobre a xícara. Era a esperança dos viciados e dos sonhadores, alimento da ânsia viva, que o impulsionava.
Três gotas se chocaram com o fundo bege. Acabara o amor. Acabara o café. Era hora de ir embora.
Genial!!!
ResponderExcluirEm tempos de cólera e pressa, o amor se acaba no tempo de beber um bule de café.
O bule só tem uma função: guardar o café e vê-lo acabar. Que função mórbida!
Até a xícara e o bule acolhem os solitários; mas abraçam melancolicamente.
Pontual, certeiro, açucarado pelo aroma do café dos eternos símbolos metafóricos que guardamos.
Lindo, lindo, lindo!
" Ana monologava algo da mesa, mas Pedro não escutava. Bebia o gole derradeiro, já morno e açucarado."
ResponderExcluirporra quando li isso fiquei muito feliz.
Parabéns,ju.
Vou passar a vir mais vezes.
Um exemplo de casal...moderno?